domingo, 25 de março de 2012

Novo Código Penal, Aborto e Igualdade


Bem, como muitos já sabem, existe um projeto de novo Código Penal sendo discutido, e logo mais saindo do forno. É um momento crucial de discussão importante para distintas parcelas da sociedade, interessadas na reformulação de partes dele ou mesmo do código inteiro. Eu como feminista brasuca temporariamente exilada tenho acompanhado as discussões que estão surgindo em torno da questão do aborto por meio das redes sociais, da internet, de blogs de companheirxs feministas, comunidades digitais, coletivos de blogueirxs e do mínimo que sai nos jornais sobre o tema.

O ponto forte da discussão ainda não é a despenalização propriamente dita do aborto, mas os casos em que este não será punido: aborto em caso de feto anencéfalo ou portador de doenças físicas ou mentais graves, e também por decisão da mulher antes das décima segunda semana, caso seja comprovado a partir da avaliação de um profissional da saúde que a mulher não tem condições psicológicas ou físicas de arcar com a maternidade. Como se nota, não estamos ainda diante da despenalização do aborto, mas diante da possibilidade de o código prever a autorização judicial para o aborto a algumas mulheres e em casos restritos.

Por um lado, se estes novos pontos são aprovados e incluídos no novo Código Penal, estamos dando um passo positivo e muito importante para evitar o sofrimento de mulheres e de famílias inteiras, não se pode negar. Por outro lado, é preciso lutar para que esse novo código incorpore a premissa de que as mulheres é que devem decidir sobre seus corpos. Me explico: tanto no caso de aborto por doenças e mal-formações graves do feto quanto no caso de que a mulher seja declarada incapaz por médico ou psicólogo, estamos diante de casos em que a mulher não tem o direito de decidir sobre seu corpo. A mulher continua submetida ao poder de decisão de terceiros, tendo que se submeter a exames e provas de médicos e da justiça, tornando-se, ao meu ver, uma vítima deste processo de sucessivas intervenções. Além disso, e já considerando as imensas desigualdades sociais e raciais que caracterizam não só o sistema judiciário como também o complexo sistema de saúde no Brasil, é fácil imaginar de antemão que a intervenção da medicina e da justiça nos casos de aborto pode funcionar como nova fonte de privilégios e privilegiadxs. 

Todos sabemos que a prática do aborto é uma realidade concreta no Brasil e no mundo, independente das condições de legalidade, entre todos os tipos de mulheres, de distintas classes, camadas, etnias, religiões, estados civis etc. A questão é que, devido à proibição do aborto no Brasil, mulheres com melhores condições materiais realizam abortos clandestinos em melhores condições, podem pagar por profissionais de saúde especializados e submeter-se ao procedimento em uma clínica limpa, com o apoio necessário, os remédios, assistência e sigilo absoluto. Mulheres pobres e que pagam pouco realizam abortos sem as devidas condições e apoio, em lugares que nada tem a ver com clínicas, na melhor das opções. Em casos tão extremos quanto reais e frequentes, porém, o aborto é realizado com a utilização de aparelhos inadequados, como utensílios domésticos ou drogas caseiras, feitos por pessoas sem nenhuma qualificação profissional na área de saúde, correndo sérios riscos, muitas vezes adquirindo doenças, sofrendo mutilações, e quando não morrem na hora ou depois, são denunciadas e podem ser condenadas e presas.

Com esse quadro em mente, se nota que despenalizar o aborto é apenas um primeiro passo. É preciso oferecer condições de igualdade entre as mulheres, para que tenham pleno direito ao seu corpo, a decidir sobre ele. Nos casos de aborto por doenças do feto ou incapacidade da mulher, é necessário defender a agilização e a desoneração dos processos de decisão pelo aborto. Defender o máximo possível a decisão da mulher sobre a dos médicos, independizar a mulher da autoridade de terceiros, também possibilitando condições para o aborto seguro e o apoio garantido e disponível no SUS.


Caso se interesse pelo tema e pela discussão, aí vão alguns links de textos afins:

-Alex Rodrigues: http://alexrnbr.wordpress.com/2012/03/11/direito-ao-aborto-passos-a-frente-mas-nao-muito/

sábado, 24 de março de 2012

Argentina despenaliza aborto em caso de estupro


Para começar a minha série de posts sobre o aborto, direitos sexuais das mulheres e direito ao próprio corpo quero falar do que aconteceu aqui na Argentina esta semana: foi descriminalizado o aborto em todo o país em caso de estupro e sem que se faça necessária a intervenção da justiça ou de parecer médico. De acordo com o novo código, nem mesmo uma denúncia de estupro é necessária para que a mulher possa abortar, muito menos a autorização de um juiz. A única condição é uma declaração jurada da vítima ou de seus responsáveis de que se trata do fruto de um estupro, e assim se realiza o procedimento. Quero contar esse caso porque acho que esse exercício de pensar e criticar a novidade pode sempre ajudar-nos a entender o caso brasileiro, além de que uma mulher pode engravidar em qualquer lugar mas os seus direitos o respeito a eles variam de acordo com o país ou lugar onde você se encontra.

Como sempre, a decisão de autorizar o aborto em caso de estupro apenas com a declaração jurada da mulher é um passo importante em direção ao aborto descriminalizado plenamente. Embora essa decisão ainda não dê pleno direito a qualquer mulher de decidir sobre manter ou interromper um processo drástico em seu próprio corpo e sua própria vida, está posta, neste caso, uma premissa importante que no Brasil, por exemplo, só vemos contemplada nas reivindicações de movimentos feministas: a de que a justiça e a medicina não podem e não devem intervir nem na decisão da mulher e nem na culpabilização da mulher pelo estupro sofrido. A palavra da mulher formalizada numa declaração jurada em casos de aborto de estupro basta como testemunho da violência sofrida, e ninguém pode se antepôr a isso, segundo o caso argentino.

A nova determinação da justiça também prevê o direito de médicos e profissionais da saúde que não aceitem, por questões religiosas ou ideológicas, por exemplo, realizar um aborto numa paciente. A eles lhes é garantido o direito de negar-se a isso, e muitos hospitais já estão inclusive divulgando listas de médicos que não o fazem. Algo meio contraditório e por isso mesmo complicado, pois de um lado se argumenta em favor do direito de decidir da mulher e de outro pelo do médico.

Fiquei pensando no caso de localidades pequenas onde exista apenas um hospital público cujos médicos em sua totalidade se neguem a realizar abortos. Aí complica, porque se trata da negativa do Estado por meio de seus agentes a realizar o cumprimento de uma lei e um direito da mulher. Não sei ainda como a nova lei se posicionaria diante destas situações, e fiquei ainda pensando em alguns embates similares, por exemplo o de médicos religiosos cuja religião proíbe seus fiéis de fazer transfusões ou doar seu sangue (esta NÃO é uma situação hipotética, tais religiões existem e contam com muitos fiéis no Brasil). O que aconteceria se, no meio de uma cirurgia num hospital público, o médico adepto de tal religião se negasse a realizar a transfusão de sangue em um paciente que a necessite, sob o risco de morte deste, porque transfusões de sangue são proibidas na religião do médico?

Outro embate que serve como contrapartida interessante é o caso de policiais cristãos (agentes do estado assim como muitos médicos) que matam em serviço. Como se sabe as religiões cristãs têm como dogma ou preceito básico os dez mandamentos de deus presentes na bíblia. O quinto desses mandamentos (o mesmo que é utilizado como base de argumentação contra o aborto e supostamente em defesa da vida da qual estas religiões e seus fiéis são os porta-vozes) é o inviolável „Não Matarás“. No mesmo raciocínio, segundo a bíblia a idéia deste mandamento é complementada pela recomendação de não agir em legítima defesa: „se te esbofeteiam na face, oferecerás também a outra“. O fato é que eu nunca vi nenhum desses policiais que mataram por „exigência da profissão“ (coisa que pra mim não existe, mas que é um artifício muito usado) serem excomungados ou ainda serem liberados pelo Estado e pela corporação das funções profissionais que o „obrigariam“ a tomar decisões drásticas – como a de apertar o gatilho -, em defesa de um colega, de uma suposta vítima ou ainda de si mesmo ou de ninguém. Realmente a questão do médico se negar a realizar um aborto legal é pra se pensar...

Outro aspecto importante dessa nova decisão na Argentina, é a de que se os procedimentos são feitos de acordo com a lei, se evita a revitimização. Sim, porque em primeiro lugar se considera os dados que mostram que a maioria dos estupros de crianças e de incapazes é perpetrada por indivíduos do círculo familiar ou de convívio próximo das vítimas, como vizinhos, padrastos, tios, primos e até mesmo pais. Considerando a complexidade das constelações familiares e a problemática das relações em que a vítima está inserida – muitas vezes sendo exposta à violência sexual de maneira já prolongada e constante -, pode acontecer que a denúncia do estuprador provoque represálias deste em relação à vítima ou até mesmo o seu assassinato imediato, ou seja, a sua revitimização. Pensando que o direito ao aborto não pode de maneira alguma ser condicionado a procedimentos que, embora não o objetivem, podem provocar a revitimização, esta lei não obriga a vítima a oferecer provas contra seu estuprador e nem provas do estupro, mesmo porque este pode anteceder o pedido de aborto em muitas semanas.

O argumento de evitar a revitimização é um dos que eu acho essenciais para reafirmar e defender o direito ao aborto no Brasil. Temos uma situação social concreta em que aborto em caso de estupro comprovado é legalizado, mas que por outro lado mulheres e crianças vítimas de estupro são submetidas todos os dias a exames de corpo de delito invasivos muito tempo depois da violência sofrida. Procedimentos desencorajadores, violência institucional extrema, medo de represálias, e questionamento de sua integridade física e moral pelos que deveriam defendê-las. Inúmeras mulheres e crianças acabam voltando a ser vítimas de estupro e violências maiores porque além de terem que denunciar seus estupradores não têm garantia de que serão protegidas pelo estado e menos ainda de que os abortos serão realizados em tempo hábil. Há de defender-se o direito ao aborto incondicionado, mas até lá devemos lutar para que o sistema existente não vitimize duplamente as vítimas de estupro e condicione o direito conquistado. 

Série de posts sobre o direito ao corpo, à sexualidade livre e ao aborto


Uiiiii, feliz ano já não tão novo! Tanto tempo sem publicar nada, embora assuntos e vontade não tivessem faltado. Tenho uma lista imensa de posts pela metade, que minhas mudanças de continente e de país nos últimos dois meses e meio me impossibilitaram de terminar, ou me fizeram perder o ânimo, a vontade ou mesmo o time, como foi o caso de diversas blogagens coletivas importantes que perdi, como a do dia internacional das mulheres, organizada pelxs companheirxs do Blogueiras Feministas. Nesse meio tempo uma cirurgia da mamis me obrigou a uma estadia prolongada na casa dos meus pais, em seguida país novo, casa nova, e trabalho, trabalho e mais trabalho. Chega de desculpas, agora quero deslanchar!

E para isso, quero abrir uma série de posts de conteúdo altamente feminista - para os desavisados - e sobre um assunto sério, que está sendo bastante discutido não só no Brasil nesse momento, mas também em diversos lugares do mundo, entre eles os Estados Unidos pré-eleições e a Argentina kirchnerista (onde me encontro): o aborto, e como não poderia deixar de ser, direitos sexuais femininos e direito ao corpo. Nesta série quero tentar contribuir à minha maneira e mesmo que não chegue tão longe com minhas idéias e opiniões para esta discussão que deveria ser generalizada, mas que não é. Não é porque não chega à maioria das pessoas e principalmente às mulheres, mais afetadas pelo assunto, porém imobilizadas pela falta das condições mínimas de informar-se, posicionar-se e ter sua voz ouvida. 

Bem, se você chegou até aqui (e esse blog deveria se chamar "o fim do mundo" ou, "onde o Judas perdeu as botas" ou ainda, "onde o vento faz a curva"...hehehe) espero que opine, me critique, comente, ou que pelo menos saia com uma pergunta na cabeça ou com a vontade de voltar a discutir. Até mais ler!

sábado, 31 de dezembro de 2011

Minha Retrospectiva 2011


Estamos no último dia do ano e esse blog (cuja idéia surgiu em janeiro e começou a ser posta em prática em maio) ainda reflete o meu dilema em ter um blog temático ou ter um blog „diário“. O ano acabou e eu ainda não me decidi, apesar de defender que blogs não podem ser uma mistureba. Acho no entanto que ainda estou me descobrindo, aprendendo não só a usar ferramentas como também me integrando ao mundo dos blogueiros e blogagens, sentindo cualé e me permitindo esse espaço (que pode ser uma zona, mas é meu, tá?!). Bem, deixo pra refletir isso num outro post, que sigo devendo, e com isso explico que hoje vou postar uma retrospectiva 2011 bem pessoal, falando do meu ano.

Comecei o ano „a full“, mesmo porque aqui janeiro é meio de semestre, dia 3 era segunda e eu já tinha aula de manhãzinha. Estava odiando o primeiro semestre do mestrado, frustrada com matérias, professores, colegas. Além disso tinha que me apresentar para os exames de proficiência de língua, e além de serem caríssimos e eu e o Respectivo estarmos fa-li-dos, se eu não aprovasse nenhum dos dois eu seria desligada – pra usar o eufemismo – do curso. Bem, estudando alemão que nem uma idiota, fazendo milhões de trabalhos e apresentando zilhões de seminários na pós, e sob uma super pressão que eu mesma me impunha... O fato mais marcante desse mês foi eu explodindo em prantos na frente dos meus colegas de curso no dia do simulado, e a professora indo atrás de mim pra ver se eu não tinha me enforcado no banheiro, hehehe. Olhando pra trás, vejo como sou exagerada: eu não só conhecia ambas provas porque já tinha feito e aprovado ambas uma vez, como estava muito melhor preparada. He, minha auto-confiança é grande, mas quando falha eu vou te contar... Outro fato importante foi encontrar um companheiro da minha facul do Brasil aqui, e ao comentarmos do passado e do presente eu comecei a refletir sobre muitas coisas. Daí nasceu a primeira chispa de vontade de fazer o blog.

Fevereiro foi o mês das provas de proficiência, tive muitas demonstrações de apoio e companheirismo por parte do Respectivo e algumas demonstrações de amizade muito importantes que queria mencionar: a primeira foi a amiga que fazia Yoga comigo pra me acalmar. A segunda foi da amiga que se encontrou comigo horas e horas antes da prova pra me ajudar a desencanar com a prova de fala. Pro bem geral e sossego da nação eu passei! A essas alturas um dos meus grupos de teatro já estava entrando de férias, e com o outro estávamos preparando um mini espetáculo que apresentamos duas vezes em Março e Abril. Se um dia alguém quiser uma dica de esporte radical eu tenho: faça teatro de improvisação em alemão. Depois disso ninguém mais vai duvidar da sua coragem e superação! Rá! Fora isso Março e Abril foram meses mornos, passei escrevendo trabalhos de faculdade e lamentando que a primeira não ia dar espaço pro Verão tão cedo. Como não deu.

Em Maio já estava me livrando do vazio das férias, semestre recém começado na faculdade, esperanças renascendo quanto ao mestrado, mas não quanto à maioria dos colegas. Desfrutei já com pitadinhas de saudade cada momento em cima da bicicleta indo e voltando da facul ou de qualquer lugar a onde ia. Dói saber que no Brasil a coisa caminha pro sentido inverso: sem carro ninguém pode sonhar em chegar a lado nenhum. Comecei o blog, depois de ter negociado com alguns amigos e amigas um blog coletivo, ou pelo menos em dupla. Percebi que a idéia do blog animava o povo, mas ninguém se sente livre o suficiente pra perder ou se roubar 2 horinhas por mês pra escrever o que quer que seja. Não culpo ninguém. Afinal, a necessidade era minha, e desejo, mais que nada.

Sobrevivi Junho, e pode ser que esteja me esquecendo de algo importante, já que minha agenda está vazia nessas datas, e por tanto, houve coisas tão importantes que eu nem precisei anotar, já que não ia esquecer de jeito nenhum...Estratégia furada essa! Julho foi o mês do prenúncio da ansiedade e confusão que iria marcar todos os próximos meses do ano: fomos à imigração para nos informar das possibilidades – baseadas na minha necessidade real de terminar o mestrado – de renovar meu visto. Desilusão, desilusão, danço eu dança você, na dança da solidão! Ia ser, e foi, bem mais difícil do que o vaticinado. Mas conto essa história outra hora com detalhes, pros que estiverem interessados em saber a furada que é fazer mestrado „nos estrangeiros“ sem bolsa e sem paitrocínio.

Em julho também aconteceu o primeiro festival de Tango Queer de Berlin, fato que me deixou muito empolgada e fez que minha pesquisa tomasse novo fôlego um pouco. Mas nada como as férias de verão europeu, quando todo mundo some, e a minha posterior volta às aulas, pra fuder com a disciplina e com a pesquisa tudo outra vez...Também fiz uns cursos pra refrescar o inglês que, digamos de maneira discreta, não é a língua que mais gosto de falar. Mas os nativos deste país aprendem idiomas muito bem e desde criancinhas, fazem mil intercambios com mil países, têm cursos de línguas baratíssimos ou grátis em cada esquina. Por mais que role a política do „contrate um estrangeiro“ e supondo que ela funcione, como que uma cidadã de classe média baixa do mundo subdesenvolvido e egressada das escolas públicas brasileiras vai competir no mercado de trabalho? Cri cri cri...

E falando nisso, Agosto e Setembro foram marcados por mais entrevistas de trampo sem sucesso. Em Agosto fiz aniversário, e a festinha foi klein aber fein. Viajei com o meu Respectivo e um amigo dele a Praga e voltando com Pitstop em Munique, viagem esta cheia de aventuras e surpresas do início ao fim como vcs podem ler aqui, bem ao estilo „desbravando“ o que a Europa pode oferecer ao turista pobre de marrédesi. Também perdi muito tempo tentando encontrar trabalho e soluções para o prolongamento do tal visto, já tentando fazer com antecedência e evitar apuros. Cheguei a pensar que talvez não valesse a pena tanto esforço pra estudar aqui, e ocupar um lugar que, na boa, é pra um aluno que tenha condições de se manter aqui sem ter que trabalhar (no sentido brasileiro do termo, quer dizer, de verdade). No fim do mês entrei para o coletivo Blogueiras Feministas. Aos poucos vou conquistando meu espacinho por lá. Isso foi nesse momento e continuará sendo uma super fonte de alegrias para mim.

No fim de Setembro e início de Outubro uma viagem com quase tudo pago à Espanha me reacendeu, reativou as nossas forças e ajudou a olharmos os problemas por outros ângulos. A viagem que começou em Madrid, teve seu ápice em Granada e terminou em Berlim, numa reunião bem pouco convencional de membros da família do Respectivo. Pra pendurar na parede da memória! Outubro: a água já tava batendo no queixo, e nada de visto em vista. Tentamos ajuda de alguns amigos, outros se ofereceram pra ajudar mas melhor se não o tivessem feito, outros perguntavam, por perguntar, o quê podiam fazer. Começamos a nos afundar nos cartões, esperando pagamentos de trabalhos que não vinham e promessas que não terminavam de cumprir-se. Voltam as aulas, eu já melhor adaptada e já gostando mais do curso desde o semestre anterior, quando começaram as matérias do meu perfil de especialização (estudos de gênero). Bate a desconfiança de que o visto do Respectivo não ia rolar: marcamos data pra nossa despedida. Ele começa a ficar ansiosinho por nós e por mim, qualidade de vida vai pro saco, noites sem dormir, distúrbios de concentração.

Em Novembro se intensificou a maior pindaíba de que tenho memória, tanto que o respectivo nem quis que comemorássemos seu niver, de tão tristinho que estava. O tal do trampo salvador sai, mas o contrato demorou até meados de dezembro. Dívidas, cartão afundado, clima de despedida, ansiedade pelo visto, incerteza. Acho que os pontos positivos foram os trabalhos que apresentei na facul, que foram elogiados, as conversas que tive com amigos de verdade, tentando me ajudar a todo custo, e um paper super polêmico que escrevi em coautoria, que me rendeu algo muito especial além do reconhecimento acadêmico: que foi ter a chance de trabalhar e pensar num ensaio junto com o amore. Mas claro que nos intervalos do paper a gente discutia as dívidas e os problemas...hehehe.

Dezembro: um turbilhão que eu ainda não processei direito. Saiu o visto, saiu o trabalho, o amore foi-se embora pro novo continente, eu assumi as burocracias e as buchas do casal por aqui, apresentei o paper super polêmico num congresso aqui, tudo misturado e não exatamente nessa ordem. Também tive que apresentar avanços do meu trabalho e infelizmente havia avançado menos do que queria. Passei um dias morando sozinha, curtindo a saudade, a solidão, mas também um espaço gostosinho pra me curtir e me pensar, já meio fora do olho do furacão, como comentei nesse post aqui. Mais perto do Natal ganhei dois companheiros de apê que já eram meus muito amigos, e isso me deixou felicíssima. Junto com eles e um casal de amigos fofos fizemos uma ceia de natal, e parece que vamos conseguir agitar uma mini festinha da Virada aqui em casa também. Na euforia de reviver meu tempos de morar no Crusp e atolada de trabalhos e burocracias sem fim, continuo com concentração zero e já sendo impelida a pensar em minha volta pra „casa“ em poucos meses.

Achei 2011 um ano pesado, no qual vi muitas descobertas sendo afogadas, e minhas forças sendo consumidas por coisas que poderiam ter sido mais simples. Quê dizer? Culpar alguém? Pra quê? Mesmo que possa encontrar culpados e apontar o dedo indicador cem vezes no nariz do culpado, isso não me faz melhor. Sim, cresci e aprendi com tanta cabeçada que demos, eu e o benzinho. Mas algo teria aprendido se tudo tivesse sido diferente. E quem sabe sem me frustrar tanto.

Deixo aos que lerem este post um poema que me inspira há vários anos, e do qual me lembro não só nas Viradas. Espero que curtam e que possa inspirar a outros também. Feliz ano novo!

Final de año
Ni el pormenor simbólico
de reemplazar un tres por un dos
ni esa metáfora baldía
que convoca un lapso que muere y otro que surge
ni el cumplimiento de un proceso astronómico
aturden y socavan
la altiplanicie de esta noche
y nos obligan a esperar
las doce irreparables campanadas.
La causa verdadera
es la sospecha general y borrosa
del enigma del Tiempo;
es el asombro ante el milagro
de que a despecho de infinitos azares,
de que a despecho de que somos
las gotas del río de Heráclito,
perdure algo en nosotros:
inmóvil,
algo que no encontró lo que buscaba.

Jorge Luis Borges



domingo, 18 de dezembro de 2011

A amiga das horas, prima e irmã do tempo


Ando impregnada daquela sarna que rasga de tanto que coça. Tomei banho de esquecimento, tentei picada de um enxame de novidades eufóricas, tentei me distrair pensando no futuro. Mas a saudade, encardida e determinada... Ah, ela não pára de coçar!


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Solidão e saudade

Depois dos meses de maior pindaíba da história da minha vida, o amor voltou para o novo continente, porque a gente tá pobre mas não acredita em fracasso antes dos 100 anos! ehehe. Há uma semana tenho o apartamento todinho a self-service. Para minsinha só. Fazia tempo que não ficava tantos dias aos cuidados e sob a atenção exclusiva de mim mesma. Desde a época de faculdade, quando meus amigos viajavam pra casa em feriado prolongado e eu sobrava a la "jiló na janta".

Na primeira noite, desmaiei de cansaço para acordar depois de dez minutos. Esperei em vão que se apagassem sozinhas as luzes da cozinha, e que o vento parasse de empurrar o frio para dentro de minha janela, caprichosamente esquecida escancarada por mim mesma. Me restou levantar da cama, por ordem no barraco e depois lamentar com o abajur a falta de sono, embora o cansaço jorrasse aos baldes. No segundo dia resgatei o hábito e a prudência de fechar a porta de casa com chave ao sair: para não esquecer aberto; para não me esquecer pra fora; mas principalmente porque não tem graça provocar tragédias como essas sem ter em quem por a culpa ou pra quem chorar o leite derramado.  

Sempre soube que gosto de ficar sozinha. Começo a desfrutar da solidão arrumando as bagunças, movimentando objetos e dispondo-os à minha maneira, ocupando espaços que estavam a serviço de outros ou da coletividade. Domino a poltrona cativa de Fulano, ocupo a escrivaninha perto da janela do Beltrano, como no prato raso branco preferido do Ciclano. Tomo um banho preguiçoso de banheira, e o despertador racha aos gritos de manhã, sem que ninguém venha me provocar maiores transtornos. 

Os primeiros dias de solidão são realmente ultra produtivos: casa limpa, durmo cedo, como só o suficiente e muita salada, pouca bagunça, estudo e leio muito em relação aos dias anteriores. Parece que a ansiedade ativa a responsabilidade e a produtividade. Lance louco, mas misteriosamente dá tempo pra tudo, e quando chega a noite me pergunto que é que foi que eu esqueci - afinal, que maluco de repente tanta eficiencia...

Lá pelo décimo dia eu volto a mim. Avacalho de novo, já abandono uns pratos na pia, espalho de novo a roupa pela casa, perco tempo com coisas desimportantes, desregulo o sono. Faço sérias DRs na presença implacável das almofadas e cortinas, e tomo de resposta o eco da minha voz, reverberando histérica. Eis que sinto a diferença entre estar sozinha e morar sozinha. E disso eu não gosto. Talvez por não ter tido tempo e dinheiro suficientes para bancar a experiência, talvez porque eu realmente precise de uma dose diária de conflito pra por a vida em equilibrio... 

Venho de uma família de cinco pessoas, que sempre morou em casa pequena, e eu sempre fui a que sempre dividiu quarto, guarda-roupa, bicicleta. Depois e já na universidade, vivi rodeada de muitas pessoas, desde dividindo quarto com mais um e apê com mais três ou quatro, até dividindo quarto com dez pessoas e o alojs com mais 70. Sem mentira! 

Conflitos e desavenças, por hora, à parte, tive sorte de sempre encontrar nos outros um pedacinho de lar. Um dos momentos em que eu mais me sinto em casa, é quando eu chego a noite e tem alguém pra escutar como foi o dia, ou pra contar do trem que quebrou, do bafo do chefe no seu cangote, de uma nova estratégia para conquistar o mundo a partir do buteco da esquina. Nessas épocas tinha até companheiros de insônia, pra passar as madrugadas de inverno enrolados em cobertor e sentados no chão dos corredores, estudando para uma prova, ou simplesmente passando o tempo. 

Terminamos nossos cursos, uns se casaram, outros continuam estudando mas se mudaram de casa, outros foram morar com novos e menos amigos, ou com seus companheiros e em outros lados, como é o meu caso (espero que por tempo determinado e breve!). O imbatível de morar junto agora é chegar e comer comida do amor feita depressinha, feita pra mim com pitadinhas de safadeza e cenourinha ralada. Assistir um filminho, ou nem isso. Comer em silêncio mesmo, dividindo a fome, trocando olhares delatores e sorrisinhos cúmplices, e completar-se de conchinha nem que seja pra ameaçar guerra nuclear em cinco minutos. 

Mas a ausência de uns faz aparecer as lembranças de todos. Em dias como hoje, quando já começa a aproximar-se o décimo dia de solidão, olho para as fotos amassadas de viajar em mala, e escuto os ecos de todas as nossas risadas, de todos os amigos e pessoas com quem compartilhei-me. Sinto o cheiro da pizza cadalora metade frango e metade quatro queijos misturado ao odor-de-verde tão característico dos corredores do bloco F. Estico o pescoço pra ver se observo algum traço, na parede da memória, do nosso monstro da louça suja, de sete cabeças que cobravam direitos de propriedade intelectual. Pergunto quanto tempo faz, quanto tempo levou pra que nós nos tornássemos, cada um dos muitos, uma das metades da única laranja. Não é da data que preciso, ao final.

Pronuncio os palavrões que a gente inventada, quando percebo que os passos na escada passaram reto pela minha porta. Viro em direção à parede amarelo-ocre bicolor:  onde ficava mesmo essa estante, quando nós chegamos aqui? Na confusão de arrumar volta e mudança, me dou conta de que não terminei de pintar os rodapés da sala de branco! O amor não sobrevive a rodapés imundos, diz o contrato da imobiliária. Não faz mal. Bora amanhã comprar tinta de novo, e pintar de branco no branco. Curtir a solidão como quem desenha no rio da memória a vitória das naus, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está. Bora acordar! Daqui há pouco já será meia noite, você tem que ir dormir.